A construção da ideia de uma criança sabe-tudo é antiga. De cara, quando pensamos nesse perfil, já imaginamos um serzinho que mal entende que o mundo é mundo, mas tem consigo a certeza de que não há nada que ele não saiba – ou não possa saber mais e melhor do que outra pessoa. Ainda que essa imagem nos seja conhecida, é preciso dar um passo para trás. Isso realmente é um reflexo de quem aquela criança é ou da maneira como ela é educada por seus pais ou responsáveis?
Não se cria filho sozinho, isso é fato. Já diz o ditado: é preciso de uma aldeia inteira para educar uma criança. A formação da personalidade desse novo ser que começa a receber toneladas de informações de uma vez só, ainda mais quando falamos de nativos digitais, não é nada fácil – nem para quem cuida desse bebê, nem para ele. Afinal, o entendimento de uma criança como ser humano (ou seja, sujeito à falhas) e não como objeto é extremamente recente.
“A gente precisa entender que a infância é uma construção histórica social, inventada há muito pouco tempo atrás em vários momentos históricos, as crianças eram tratadas como mini adultos ou invisíveis com suas especificidades. Essa infância que a gente conhece hoje foi inventada muito recentemente. Esse lugar que a criança sabe de tudo, ela vem em resposta a esse tempo de invisibilidade, em que a criança não tinha um lugar físico e simbólico na nossa sociedade”, explica Vanessa Abdo, doutora em psicologia e CEO do Mamis na Madrugada.
Com a mudança de perspectiva e o novo olhar sobre esse ser em formação, tem acontecido um trabalho muito extenso em cima da maneira como a sociedade enxerga as crianças – mas, principalmente, como elas mesmas se enxergam. A autoestima delas, muito relacionada com o ato de ouvir o que se tem a dizer e acolher o que elas sentem, é crucial para retirá-las no lugar de objeto. No entanto, como tudo na vida, é preciso encontrar o caminho do meio para que não haja um exagero nesse tipo de cuidado.
Quando o tiro sai pela culatra
É o que Vanessa chama de efeito colateral. “A criança é tratada feito um ‘reizinho’, como se ela fosse a pessoa mais importante da casa, da família, daquela situação. E isso a faz crescer com a sensação de que ela é muito especial, muito importante e que os outros é que são objetos. Então, ela coloca as vontades dela acima da das necessidades e da importância dos demais membros da família”.
Veja bem: isso não coloca a criança no lugar de pessoa maligna e que faz as coisas pensando em colocar os pais em situações complicadas. Esse pensamento, que coloca esse ser humano que ainda está aprendendo até mesmo a entender o que sente em momentos difíceis, é o que colabora para que crianças ainda sejam vistas como objetos e não o que de fato são: pessoas que podem (e vão) cometer erros, que sentem tudo tal qual adultos e possuem como fator de dificuldade para explicar o que pensam e sentem por falta de repertório.
A falta de equilíbrio na hora de educar uma criança gera, por sua vez, a autoestima compensatória – que, ao contrário do que muitos podem pensar, não é o excesso de autoestima, e sim a falta dela. “Esse comportamento denuncia uma autoestima enfraquecida. A sensação de frustração, de não conseguir dar conta de uma determinada coisa que se espera dela, a criança supre com o jeito ‘sabe-tudo’”.
Não existe vilão da história. Pais fazem o seu melhor, sempre, para educar o filho seguindo seus valores e pensando no bem dele. Ao mesmo tempo, essa criança absorve as informações que recebe de todos os lados – escola, família, internet – e espelha o comportamento dos pais, juntamente com o que lhe é afirmado diariamente. Por isso a importância do equilíbrio. “Esse lugar da criança que sabe tudo vem de um exagero que não se sustenta. Porque ao longo do dia ela também é exposta à frustração a sentimentos de incompetência, de não conseguir fazer as coisas, de jogar uma bola ou responder uma questão de matemática”.
A raiz da questão
De onde vem essa criança que, dentro de casa, é colocada em um bibelô e, quando cai no mundo, se depara com o moinho de Cartola e sonhos triturados? A resposta pode parecer simples, ainda que já saibamos que a teoria é sempre mais bonita que a prática: esse ser com autoestima compensatória nasce no meio das dores, frustrações e traumas de adultos que, durante o início da vida, tiveram uma infância sofrida. “Os pais tentam compensar evitando a qualquer custo que a criança se frustre. Mas isso não é viável. Ela cresce com uma falsa sensação de poder, que ela não tem, que não se sustenta. A maior vítima é ela mesma”.
Lidar com a frustração não é fácil, até mesmo para adultos. Confrontar sensações desagradáveis, vasculhar qual a raiz desse incômodo e acolher o que você está sentindo é um processo que leva tempo e pede trabalho duro. Mas, principalmente quando envolvemos um ser humano em formação nessa conta, esse autoconhecimento é ainda mais necessário. Só assim é possível ajudar seu filho a entender melhor as próprias emoções dele. “Pais e responsáveis precisam ser modelos de adultos que lidam melhor com essas questões e que expõem as crianças a desafios de forma saudável”.
E a internet com isso?
É importante também destacar o papel que a internet tem nessa história toda. “A criança acha que, porque ela tem acesso ao Google, ela possui todos os saberes. Mas ela não tem. A criança tem a informação, mas não o conhecimento. Isso acontece quando a gente recebe a informação e faz uma análise a partir das nossas experiências e dos nossos saberes”, explica Vanessa.
“Só o acesso à informação não constitui um ‘especialista’ daquele assunto. Então, a gente precisa desconstruir essa ideia de que as plataformas de pesquisa sabem tudo. Não é verdade, é preciso passar pela experiência. É necessário colocar essa criança para se socializar na pré-escola, para viver frustração nos esportes e na vida real”.