80 mil divórcios foram registrados no ano de 2021, segundo a Agência Brasil. O número é recorde desde 2007, e até maio de 2022 já haviam sido computadas 17 mil separações. Isso significa que as famílias, hoje em dia, apresentam cada vez mais a presença de madrastas e padrastos. De acordo com o dicionário moderno Michaelis, a definição de madrasta é, além de “mulher casada em relação aos filhos que seu marido teve de casamentos anteriores”, “mulher má, incapaz de revelar gestos de ternura”. Contudo, a palavra madrasta vem do latim matrastam, que faz alusão a mater, “mãe” no mesmo idioma. Mesmo que famílias contendo madrastas estejam se tornando mais comuns, esse estereótipo ainda está longe de ser mudado. Desde as histórias antigas até algumas atuais perpetuam a imagem da madrasta vaidosa, invejosa e cruel sem motivo algum tentando ao máximo “se livrar” da enteada.
Mesmo com tantos estímulos para que as madrastas sejam as vilãs da trama, elas deixam claro o quanto querem (e precisam) que essa visão mude: “Isso é um desserviço, já que ficamos com essas imagens desses filmes que as crianças assistem repetidas vezes, que não correspondem e talvez nunca tenham correspondido à realidade. É uma romantização negativa, já que entra na cabeça das crianças que a madrasta é algo ruim”, diz a jornalista Lia Bock. Já Mariana Camardelli, educadora parental, entende que não há necessidade de criar rivalidade: “Não vivemos mais em uma sociedade que não aceita o divórcio. Ele pode acontecer e isso não leva necessariamente ao aparecimento de uma figura de rivalidade, de guerra. Podemos coexistir, e a criança ganha mais figuras de afeto e cuidado ao redor dela“.
Deixando de lado a imagem das madrastas criada internacionalmente, elas são uma figura relativamente nova no cenário brasileiro: “É importante lembrar que, antigamente, ela era realmente a figura que aparecia no lugar da mãe que faleceu, para ser responsável pelas crianças e pela casa. […] A regularização do divórcio é muito recente, com a data de 1977 aqui no Brasil. E sabemos que muitos casamentos eram desfeitos antes dessa legislação entrar em vigor. Com o ‘casados até que a morte os separe’ também ficou a crença de que a primeira esposa que é a oficial e que novos relacionamentos, uniões ou casamentos não eram legítimos […] Com a legislação de guarda compartilhada como o padrão, cada vez mais as madrastas são figuras presentes e que compartilham da criação dos enteados junto com o pai ou mãe”, explicou Danielle Madrigrano, arquiteta.
A primeira forma de garantir que o relacionamento seja o melhor possível desde o primeiro momento é respeitar o tempo da criança. A psicanalista Silvia Lobo, ressaltou: “Há uma delicadeza nesse momento que exige que aquela que se aproxima o faça sem pressa. A precipitação causa estragos e afastamento. A aproximação respeitosa não assusta e abre espaço com maior facilidade”. Além disso, Vanessa Abdo, doutora em psicologia, lembra que a adulta da relação é a madrasta: “Ela precisa se comportar como uma pessoa adulta. A criança não tem tanto repertório para lidar com situações difíceis, mas nós adultos temos que ter. De acordo com Carl Jung: ‘O contrário do amor é o poder’. Se cada um souber qual é o seu papel e o lugar que cada um ocupa naquela dinâmica familiar, o poder acaba em segundo plano, ele não é necessário”.
Encanto à primeira vista
O primeiro encontro é importante para o relacionamento que está sendo formado, mas mais do que isso, a forma que aquele momento vai sucedendo na rotina também. Para Mariana Camardelli, criadora da conta @somos.madrastas no Instagram em que fala sobre o papel da madrasta nas famílias, o encontro com os enteados seguiu de forma natural: “Quando decidimos que ficaríamos juntos, meu companheiro me apresentou como namorada e levamos os meninos para fazer stencil e grafitar em uma rua. Foi natural, divertido, sem excessos e sem forçar nada. Como toda conexão com uma criança deve ser: simples, natural e sem exageros”.
Já para Danielle Madrigrano, responsável pela página @dilemasdemadrasta, a relação se construiu no primeiro olhar: “Nos encontramos no shopping! Ela no colo do pai, de costas, se virou bem na hora que eu cheguei e já apertou os olhos de vergonha quando me viu. Não me lembro quais foram as palavras que ele usou para me apresentar, mas ela logo quis ir para o chão e me puxar para me mostrar a decoração de Natal do local. Eu estava com um frio na barriga tão grande dela não gostar de mim, mas no primeiro segundo do nosso encontro eu já nem lembrava que esse sentimento tinha existido. Foi um momento tão bonito que parecia que a gente já se conhecia há muito tempo“. O encontro de Lia com a enteada não foi planejado: “Eu estava na casa do meu marido, que na época era meu namorado, e ela já estava dormindo. Ela acordou e foi para a sala quando estávamos comendo”. Mesmo com o primeiro contato sendo uma surpresa, a relação das duas cresceu da melhor forma possível: “Eu lembro que a primeira vez que nós saímos foi para uma festa junina, e ela ficou no meu colo, dançamos juntas, acho que ela não entendia muito essa coisa de ser ‘namorada do papai’. […] Foi uma relação tranquila, e os questionamentos vieram com a idade”.
Ao contrário do que é esperado pelo estereótipo, as três madrastas não tiveram problemas no relacionamento, sempre deixando claro o espaço que ocupam na vida da criança: “Não sei como explicar, nem se todos acreditam nisso, mas nós ficamos conectadas desde os primeiros dias. Chegamos a ter os mesmos sonhos. Dava para ver que ela ficava muito feliz ao me ver! Era espontâneo e muito intenso”, contou Danielle. Já Mariana deixou claro que nunca passou de onde não devia: “Desde o começo busquei o meu espaço e o meu papel como madrasta. Nunca tentei sobrepor meu papel ao de ninguém. Sempre criei meu lugar com eles, com confiança e sendo a parte adulta da relação, sempre natural e entendendo a responsabilidade da parentalidade da madrasta”.
O que é ser madrasta?
Segundo as advogadas Bianca Lemos e Débora Ghelman, especialistas em Direito de Família e Sucessões, não existe nada nos dispositivos legais brasileiros que consiga definir diretamente a figura da madrasta, apenas que ela é aquela que possui uma união estável (tendo ou não registro), ou é casada com alguém que tenha filhos: “Apesar de não haver nenhuma previsão legal sobre a figura da madrasta, propriamente dita, há a previsão da parentalidade, ou filiação socioafetiva. Tanto a Constituição quanto o Código Civil admitem este tipo de laço familiar […] Portanto, a filiação socioafetiva é quando a paternidade ou maternidade é reconhecida judicialmente com base no afeto e criação daquela criança ou adolescente, mesmo não possuindo nenhum vínculo biológico com ela”.
“Ser madrasta para mim é decidir assumir um papel de parentalidade. É entrar para compor um núcleo familiar, cuidar, participar e estar comprometida com a criação de um ser humano íntegro, autônomo e realizado“, disse Mariana Camardelli. Para Lia Bock, que foi mãe antes e depois de ser madrasta, é tratar igual sabendo que não é a mesma coisa: “É um exercício de amar igual aos filhos, de agir igual, mas ao mesmo tempo sabendo que é diferente. É saber que nunca vai ser igual, mas que você trabalha para que seja”. Já Danielle Madrigrano não escondeu que é uma pergunta até mesmo difícil de responder: “Ser madrasta é descobrir um amor tão grande que parece que não cabe no peito. É deixar crescer raízes no seu coração, profundas e firmes! É construção de relacionamento que vem aos poucos, que precisa de esforço constante, por melhor que seja o relacionamento. É desconstrução diária também! Por ter que lembrar que aquela criança não tem a mesma educação nem criação que a sua […] É ter que desconstruir conceitos e preconceitos todos os dias sobre questões que você nem se dava conta que existiam antes de se tornar madrasta”.
Conversa entre papéis
Além disso, ser madrasta também muda a forma que a maternidade é enxergada. Mariana foi madrasta antes de se tornar mãe, e “do dia para a noite” se viu convivendo diariamente com duas crianças, participando em cada espaço da rotina: “Minha vida mudou completamente – e apareceu uma grande solidão por ter vários questionamentos e crises que ninguém entendia, que eu não tinha com quem compartilhar”. Já Lia viveu a maternidade antes de ser madrasta, e a relação com cinco crianças, sendo três delas irmãs, faz com que ela seja uma mistura de mãe e madrasta. Danielle contou que sempre sonhou em ser mãe, e que quando se tornou madrasta, percebeu que materna a enteada desde sempre, com cuidado, acolhimento e limites: “Dar limites também é dar amor, porque é um gesto de respeito com a gente e com o outro!”. De acordo com as advogadas, as madrastas não possuem nenhum poder familiar sob o enteado após o casamento ou união estável, já que o mesmo reside apenas com os pais biológicos. Contudo, no caso de parentalidade socioafetiva, ela recebe todos os deveres e direitos de uma mãe de laços biológicos. Na visão de Vanessa Abdo e Silvia Lobo, a linha tênue que “limita” os cuidados da madrasta deve ser algo que faz sentido para aquele núcleo familiar, e que seja sincero, um interesse honesto pela criança.
Os dois pesos da moeda
Ser madrasta também possui desafi os e qualidades. Danielle deixa claro isso, ao explicar um dos maiores desafios que enfrenta: “Entender que muita gente não vai entender seus sentimentos pelos seus enteados, que essa solidão é tão comum quanto a culpa que as mães carregam quando viram mães. Madrastas também carregam culpas, dilemas e sentimentos tão intensos quanto, mas que normalmente não são validados”. Mariana também falou sobre a invisibilidade: “A falta de voz. A gente parece pisar em ovos o tempo todo. Parece que tem uma torcida na arquibancada esperando um erro para dizer ‘Viu? Era má!’“.
A diplomacia encontrada no relacionamento “madrasta-enteada” é um dos desafios de Lia: “Tem um cuidado porque, às vezes, eu chego em um lugar com ela e de lá eu não passo, chamo o pai. Eu vou até certo ponto, dali para frente é com ele”. Mesmo com as dificuldades, a figura da madrasta também
passa por momentos bons: “A melhor parte de ser madrasta é quase a mesma de ser mãe: ser amada incondicionalmente pelas crianças, com esse amor puro e sem travas”, contou Danielle. Já para Mariana, a cumplicidade entre os filhos e os enteados é o melhor presente que poderia ter, enquanto Lia fala sobre a vantagem de ser uma pessoa “de fora”, que pode acompanhar a enteada quando os pais não podem, sendo um equilíbrio. A presença da madrasta não muda a vida apenas da criança, mas da adulta também. Mesmo com tantas imagens permeando a figura da madrasta, elas são apenas representações simbólicas, segundo Vanessa Abdo: “Cada família vai criar vínculos específi cos com seus membros. Assim como não podemos generalizar que todos os pais e mães são só bons, não podemos dizer que as madrastas são só más”. Criar crianças não é apenas responsabilidade dos pais, e, sim, de toda uma aldeia. Afinal, só criam enteados felizes, madrastas felizes.
Fugindo dos contos de fadas
Filmes e séries que trazem o papel da madrasta de outra forma:
- This Is Us – Prime Video
- Juntos e Misturados – HBO Max
- Doze é demais (2022) – Disney+
- Paternidade – Netflix
- Quase Irmãos – HBO Max
O que ninguém te contou sobre ser madrasta que você gostaria de ter ouvido?
Danielle, Mariana e Lia responderam essa pergunta:
- A solidão
- O meu valor como madrasta
- A família também é minha
- A mãe e a avó da criança também vêm junto
- O quão apegada eu seria à criança e ela a mim
- Eu sou uma referência também
- O maior desafio são os adultos
- É mais difícil do que eu poderia imaginar